sábado, janeiro 29, 2022

Problemas

 

Há problemas que voltam sempre, façamos o que fizermos...




















sábado, janeiro 22, 2022

Memória musical inacabada

Esta verdadeira descoberta, há muito esquecida nas brumas implacáveis do tempo, trata-se de um conjunto de canções, pertencentes a um álbum conceptual chamado "Beyond A Shadow Of Doubt". Resultou de um projeto musical concebido por dois produtores musicais, compositores e também cantores, de seu nome Gary Usher e Richard "Dick" Campbell.
Gary Usher
Richard "Dick" Campbell
Gary Usher foi um dos principais elementos num outro projeto musical, chamado "Sagittarius", do qual resultou um primeiro disco: "Present Tense", lançado em 1968, mas que incluía também gravações já feitas em 1966 e 1967. O outro elemento principal no "Sagittarius" era Curt Boettcher, que também cantou na maior parte dos temas incluídos nesse disco. São os dois que aparecem na montagem do centauro da capa de "Present Tense".

Houve ainda um segundo disco, "The Blue Marble", gravado e editado em 1969, mas onde a participação de Curt Boettcher foi menor. Neste disco final, Gary Usher assumiu o papel principal, inclusive nas vozes.

No entanto, Gary Usher, em parceria com Dick Campbell, contaria, de novo, com a prestimosa colaboração de Curt Boettcher nas gravações e arranjos das canções incluídas no álbum conceptual "Beyond A Shadow Of Doubt".
As gravações para este disco foram feitas, segundo se sabe, em 1971. Quase todas foram efetuadas no estúdio pessoal de Gary Usher, com as vozes e a instrumentação básicas e a participação de alguns músicos de estúdio amigos de Gary, para além dos três elementos centrais já referidos (Gary, Dick e Curt). No entanto, apesar de todo o otimismo e empenho iniciais, o álbum ficou inacabado.
Gary Usher surge como a voz principal na maioria dos temas, enquanto nos coros destacam-se, sobretudo, as vozes de Dick Campbell e Curt Boettcher. No entanto, a intenção original era a de entregar a voz principal a outro cantor, caso as gravações tivessem prosseguido e transitado para um estúdio profissional devidamente apetrechado, onde os temas seriam gravados e arranjados na sua versão final. Gary Usher, provavelmente, só participaria nos coros finais e na produção. Todavia, por razões não apuradas, nada disto aconteceu.

As canções ficaram gravadas, tal qual foram feitas no estúdio pessoal de Gary Usher. Ficou tudo, praticamente, no ponto de partida. Para todo o sempre...
Foi preciso esperar pelo ano de 2001, para que estas gravações fossem editadas em CD! Todavia, esta edição só foi feita no Japão e em número de exemplares limitado. Por isso, mesmo esta edição em CD, já está praticamente esgotada há muito. Não se encontra à venda em parte nenhuma, quanto mais em Portugal. Os raros exemplares que ainda se encontrarem à venda, talvez on-line, surgirão a preços exorbitantes.

O que torna este álbum conceptual particularmente tocante, é o facto de as canções nele contidas, na verdade, serem apenas "demos" ou seja, são temas de demonstração, onde estão mais ou menos explícitos os elementos fundamentais que se pretende obter nas versões finais. Quem já contactou com a realidade de gravar canções em estúdio, sabe que esse é o verdadeiro ponto de partida para se conseguir a versão definitiva, que depois será gravada para, em princípio, ser editada e lançada no mercado, ou seja a "master".
No entanto, devido ao grande profissionalismo de Gary Usher, a sua já longa experiência de trabalho em estúdios profissionais sofisticados (para a época), para não falar no rigor e amor com que ele se entregava a qualquer projeto musical, as "demos" resultantes revelavam uma qualidade e um grau de elaboração, muito próximos, senão superiores, da generalidade das "masters" que todos os dias são criadas nos mais diversos estúdios. Por vezes, temos a clara sensação de estar a ouvir temas devidamente acabados. Quase só a ausência de uma bateria real, parece quebrar essa feliz ilusão. As percussões utilizadas nestas gravações eram ainda do mais básico e improvisado que se possa imaginar... Servia tudo onde se pudesse bater, literalmente. Pandeireta, caixas de cartão, tambores artesanais, tampos de cadeiras, latas vazias, etc. 

As gravações contidas neste álbum conceptual, como já disse atrás, estão ainda na fase "demo" e não foram alvo de "tratamento" em estúdio profissional moderno (para os padrões da época) e, muito menos, associadas a alguma editora então existente no mercado. Por isso, não existem "masters" ou versões finais destes temas. Repare-se que no ano em que estas canções foram gravadas (1971), ainda estávamos na fase do "analógico" e não se falava nem sequer no "digital". O suporte era a fita magnética, sob a forma circular de bobine, que, por ser perecível, era necessário guardar em condições muito específicas. A duração destas "tapes" era muito variável e é mais do que certo que um grande número de fitas se perdeu ou ficou alterado no espaço de apenas algumas décadas. Por vezes, bastava um simples descuido e ainda mais um incêndio para se perderem registos sonoros únicos, de um momento para o outro. Uma das formas de salvaguardar estas "preciosidades" é proceder à sua conversão em registos digitais. Todavia, é um trabalho que deve ser efetuado por profissionais devidamente credenciados ou pelo menos, extremamente cuidadosos. O problema é que isto exige muito tempo e dinheiro. É um trabalho que requer grande paciência e não há muitos profissionais dispostos a entrar numa operação desta natureza, mesmo todos eles reconhecendo unanimemente a necessidade urgente de se proceder a esta árdua tarefa. Acontece que, muitos deles, devido ao facto de estarem associados a estúdios de gravação, onde o serviço é permanente, encontram-se cativos de outras prioridades...

Nunca mais se pegou nestas gravações deste álbum, desde esse começo dos anos 70. Ficou sempre no ar a ideia de, eventualmente, serem devidamente concluídas e, se possível, editadas numa fase posterior. Acontece que, mais uma vez, outras prioridades se colocaram aos que estiveram por detrás deste projeto... Apesar de todos aqueles que tiveram a rara oportunidade de tomar contacto com estas canções, ainda mais os seus autores, reconhecerem o seu valor e mesmo potencial de mercado. O problema é que a altura ideal para pegar de novo naquelas gravações, nunca chegava. As modas musicais dos anos 70, e depois dos anos 80, não pareciam dar espaço a se relançarem canções de um estilo que, então, soava algo "datado".

Como se isso não bastasse, os três elementos fulcrais na criação desta obra, Gary Usher, Dick Campbell e Curt Boettcher, foram todos "presenteados" com mortes prematuras.

Curt Boettcher
Curt Boettcher (1944-1987), há muito quase remetido ao mais completo anonimato, faleceu na sequência de uma operação aos pulmões que correu mal.

Gary Usher
Seguiu-se-lhe Gary Usher (1938-1990) que, ainda não completamente refeito da morte injusta do seu amigo e colega de projetos musicais, muitos inéditos, viu-lhe ser diagnosticado um cancro que o venceria antes de completar 52 anos.
Dick Campbell
Por fim, Dick Campbell (1944-2002), que se tornaria o principal detentor do legado da memória deste e outros projetos musicais também inacabados, depois de assistir àqueles desaparecimentos irreparáveis, também deixaria o mundo dos vivos. Devido a uma doença degenerativa de origem genética, que lhe fora diagnosticada ainda no final da década de 1980, Dick Campbell afastou-se das suas atividades profissionais e praticamente da vida pública, colaborando esporadicamente com outros cantores e realizadores, enquanto a saúde lhe foi permitindo. Acontece que o seu problema genético acabaria por gerar um número cada vez maior de complicações, que lhe afetavam quase todo o corpo, nomeadamente o aparelho respiratório. No princípio do ano da sua morte (2002), foi sujeito a um transplante pulmonar, do qual resultariam inesperadas complicações. Na sequência disto, nunca mais recuperou a consciência até falecer alguns meses depois.
Esta irreversibilidade da morte, também seria uma razão fundamental para que este álbum conceptual tivesse ficado esquecido durante décadas no depósito de algum armazém a ganhar pó e a "envelhecer".
          Mas as músicas contidas no "Beyond A Shadow Of Doubt", são otimistas e são um hino à vida, ainda que de uma forma particularmente fantasiada. Seria através de legados musicais desta natureza que, quem esteve por trás da sua concepção, gostaria de ser recordado para a posteridade. Mais uma vez, salienta-se o facto de haver muitos documentos musicais que nunca verão a luz do dia e se perderão para sempre... O que vai aparecendo não é mais do que a ponta de um vasto iceberg. O dinheiro fala sempre mais alto e, por isso, quase toda a primazia é dada ao que é comercial, mesmo que de qualidade duvidosa...

De seguida, uma seleção dos temas que eu considero, pessoalmente, mais interessantes desta coletânea:

Ships.
Neste tema, a voz mais em destaque é a de Gary Usher.

Everything Turns Out Right.
Neste tema, é sobretudo a voz de Richard "Dick" Campbell a ter maior destaque.

We May Make It Yet.
Este último tema, foi um dos raros em que se avançou mais nos arranjos, tendo-se chegado a utilizar aqui uma bateria verdadeira, mas foi por esta altura que se suspenderam as operações no "Beyond A Shadow Of Doubt". De seguida, vieram décadas de completo esquecimento...


sábado, janeiro 08, 2022

O começo e o fim - Gary Usher, Curt Boettcher, Sagittarius, Millennium e mais


Sagittarius  (Gary Usher) - "The Blue Marble". Tema composto por Lee Mallory.

Numa tentativa de obterem o êxito que lhes escapava, Gary Usher (1938-1990) e Curt Boettcher (1944-1987) decidem pôr de novo a funcionar o seu projecto musical Sagittarius. De referir que este Sagittarius não era representado por uma banda concreta e os seus únicos elementos fixos eram apenas aqueles dois. Todas as outras vozes e partes instrumentais eram executadas por cantores convidados e músicos de estúdio, que eram igualmente solicitados para outros projectos musicais paralelos. Esta impossibilidade de conseguir criar uma road band, tornava este Sagittarius enigmático e misterioso, mas também impossibilitava os espectáculos ao vivo e a promoção mediática, tão essenciais para um grupo ou cantor se dar a conhecer ao grande público.
Desta forma, Gary Usher e Curt Boettcher tinham em mãos uma tarefa hercúlea, que consistia em conseguir finalmente captar o público médio ouvinte para o seu som, destacando-se de entre os demais num mercado já de si muito competitivo e saturado, mas também em procurar manter, senão ultrapassar, a criatividade e a qualidade do primeiro álbum “Present Tense”, lançado a 3 de Julho de 1968. Isto porque, já nessa altura, havia um núcleo de fiéis ouvintes e críticos musicais que reconheciam a qualidade suprema deste disco, que merecia uma melhor sorte. Apesar de tudo, as expectativas ainda eram muito elevadas.
Assim, surge o disco “The Blue Marble”, uma homenagem inequívoca ao planeta Terra, bem visível na capa, num ano assinalado pela primeira viagem e chegada à Lua. Este disco surge como o primeiro álbum e, actualmente, o principal “sobrevivente” de uma editora discográfica que só durou pouco mais de meio ano: a Together Records. Esta fora fundada em 1969, sob a iniciativa de Gary Usher, na sequência do seu despedimento da Columbia Records onde, apesar de tudo, tinha deixado nome e conseguido um palmarés muito considerável. Basta referir que o seu trabalho de produtor se cruzou com grandes nomes da música popular moderna, tais como os “Byrds” e os “Beach Boys”. Relativamente a este último grupo, Gary Usher também emprestaria um pouco dos seus dotes de compositor, tendo escrito várias canções em parceria com Brian Wilson, inclusive o famoso “In My Room”, que seria reutilizado para tema de abertura do álbum “The Blue Marble”. De referir que esta versão superproduzida de “In My Room”, seria o único êxito (menor), extraído do segundo e último álbum dos Sagittarius.
Sagittarius (Gary Usher, Curt Boettcher, e outros) - "In My Room".

Ao contrário do primeiro trabalho, “Present Tense”, que era dominado, pelo menos a nível das vozes, pela figura de Curt Boettcher, “The Blue Marble” dá um especial predomínio a Gary Usher. Neste segundo disco, Gary Usher decidiu tomar as rédeas da sua produção, apesar de, em dois temas, ele a partilhar com o seu colega Curt Boettcher e com Keith Olsen no tema de abertura.
Gary Usher assumiu também o papel de compositor principal, exceptuando no tema-título, “The Blue Marble”, que era da autoria do seu conhecido Lee Mallory, e participou quase sempre nas partes vocais, se não mesmo como vocalista principal, da maioria dos temas, apesar de ele próprio não se considerar muito dotado em termos vocais. Ironicamente, a voz que Gary Usher consegue mostrar nos temas onde é o vocalista principal, deve muito a Curt Boettcher, este um cantor de excelência.
Apesar de ainda se encontrar presente durante as gravações deste disco, enquanto co-fundador dos Sagittarius, Curt Boetcher aparece relegado para um plano quase secundário. A sua voz só surge a solo no tema “Will You Ever See Me” e em harmonia no tema “In My Room”. Dá a clara impressão de, na prática, ele ser quase apenas mais um simples convidado, tal como os outros session singers que iam aparecendo de quando em quando.
Sagittarius (Curt Boettcher) - "Will You Ever See Me"

Esta participação quase superficial de Boettcher encontrará explicação no facto de ele se encontrar, por essa altura, à frente de um outro projecto musical muito ambicioso, representado pelo grupo Millennium. Em 1968 estes Millennium haviam gravado, para a antiga editora de Gary Usher – a Columbia Records – um dos álbuns mais caros de sempre: “Begin”. Curt Boettcher e os outros elementos dos Millennium, entre os quais Lee Mallory, contavam que este disco fosse o começo de uma nova fase nas suas carreiras, onde o sucesso poderia começar finalmente a brilhar sobre as suas cabeças. Eles haviam utilizado ao máximo as suas capacidades individuais e tudo aquilo que a tecnologia existente em estúdio lhes pudesse oferecer, julgando ter produzido a obra-prima das suas carreiras musicais.
Millennium - "Prelude/To Claudia On A Thursday"

 Millennium - "5 A.M."

O que acabou por acontecer, foi que, devido a uma promoção deficiente, associada a espectáculos ao vivo que não conseguiam reproduzir a qualidade do trabalho de estúdio, o álbum “Begin”, revelou-se um fracasso de vendas logo nas cruciais primeiras semanas. Os donos da Columbia Records já haviam ficado um tanto quanto agastados com os avultados custos de produção que o álbum “Begin” havia implicado. O insucesso nas vendas foi a gota de água para não renovarem o contrato discográfico dos Millennium.
Millennium - "It's You".

O despedimento dos Millennium coincidiu mais ou menos com a saída abrupta de Gary Usher da Columbia Records. Foi na sequência disto que Curt Boettcher decidiu acolher a sua nova banda na Together Records, a então nova editora “independente” que ele havia fundado juntamente com Gary Usher e Keith Olsen, com o apoio de uma companhia de distribuição discográfica de Mike Curb.

The Mike Curb Congregation - "Burning Bridges".

 The Mike Curb Congregation - "It's A Small World".

Acontece que, apesar do grande espírito de iniciativa, que era a principal força motriz da Together Records, ter permitido a produção de um grande número de projectos musicais, esta começou a revelar-se um poço sem fundo, onde eram investidas verbas sem o devido retorno. Desta forma, a Together Records começou a entrar em decadência passados apenas alguns meses. A retirada do apoio por parte de Mike Curb e outros investidores, ditou o fim desta editora no começo de 1970. Muitas das gravações produzidas para esta editora ficariam inéditas por um longo tempo. 

Millennium - "Can You See" (1967)

Entre estas estavam diversas gravações do outro grupo principal desta editora, os Millennium, acabando, desta forma, o seu primeiro álbum, “Begin” (trad.:começo/começar), por ser também o seu único e último.


 Millennium (Curt Boettcher) - "There's Nothing More To Say".

Após o fiasco da Together Records, tanto Gary Usher como Curt Boettcher viram as suas carreiras entrar numa longa fase de incerteza, com muitos períodos de interregno criativo, sendo apenas solicitados de quando em quando. Praticamente esquecidos do grande público, acabariam, no entanto, por continuar a ser altamente considerados por todos aqueles que os conheciam de perto e os haviam acompanhado ao longo das suas curtas vidas e carreiras.

Sagittarius  (Gary Usher) - "I Still Can See Your Face".

O alinhamento original das canções no LP "The Blue Marble" dos Sagittarius, lançado em 1969. Destaco ainda o seu penúltimo tema "I Still See Your Face" e também o tema com que ele originalmente terminava: "Cloud Talk" (24:12). Um tema perfeito para encerrar um disco.