No vasto mundo da música contemporânea dos últimos 50 anos, diversos foram os talentos que a voragem do tempo se encarregou de votar ao esquecimento. Um desses nomes era o de Curt Boettcher. Nascido em Janeiro de 1944, originário de Wisconsin, foi ao longo da sua carreira de mais ou menos 25 anos, compositor, cantor, músico e produtor de discos. Apesar de o seu nome não constar como entrada de muitas enciclopédias de música publicadas até à atualidade, muitos artistas importantes lhe ficaram a dever, entre estes os Beach Boys.
Muito do seu trabalho consistiu essencialmente em colaborar com cantores,grupos e produtores, tendo o seu nome, quase sempre, surgido algo discretamente mencionado em fichas técnicas e nos créditos de diversas canções, sem referir com precisão a extensão do seu real contributo no resultado final.
The Association - "And Then... Along Comes The Association" (1966). Neste primeiro LP deste grupo, a produção e colaboração de Curt Boettcher, nos mais variados aspetos, inclusive instrumental, foi essencial. Aliás, ele era um dos compositores do tema mais importante deste disco, "Along Comes Mary", apesar de uma "vigarice" do outro co-autor, Tandyn Almer, que se registou como o seu único autor, para receber a totalidade das royalties.
The Association - "Along Comes Mary" (1966).
The Association - "One Too Many Mornings". (1965). Foi esta cover de um tema original de Bob Dylan que chamou a atenção de Curt Boettcher para os The Association e o fez decidir-se a produzir o seu 1º LP.
Esta versão regravada de "Enter The Young" começa, todavia, com a gravação original do tema "The Machine". Este tema constituía uma espécie de "apresentação virtual" dos The Association. Feito durante as gravações do seu 1º LP de 1966, ficaria inédito até 2002. Nesta curiosa introdução, o baixista Brian Cole (1942-1972) é o "mestre de cerimónias". Este breve tema estava, originalmente, destinado a ser o primeiro tema do lado A do LP e resultava da ideia, depois descartada, de fazer um álbum de características conceptuais, coisa pioneira para a época. A ideia terá partido de Curt Boettcher mas, em resultado de pressões da parte dos outros elementos envolvidos na produção deste LP, optou-se por lançar um álbum de natureza mais convencional, abandonando-se a proposta inicial, considerada um tanto "arriscada". Sendo assim, cada canção surge como era de esperar, ou seja, autonomizada. Terão sido pressões deste género que terão feito Curt Boettcher pôr completamente de parte a ideia de se tornar no principal produtor dos The Association, tal como era George Martin com os Beatles, e a desligar-se da banda findas as gravações do 1º LP.
The Association - "Enter The Young" (1966). A versão original, tal como aparecia no primeiro LP de 1966. Neste vídeo, em particular, ter-se-á feito uma "edição" que aumenta a duração do tema para quase o dobro do original, ao se incluir apenas a parte instrumental no início.
The Association - "Round Again" (1966). "Samples" deste tema, composto pelo guitarrista Gary Jules Alexander (1943), foram incluídos na gravação final do tema "Hoops", pertencente ao álbum "Come With Us" dos Chemical Brothers, lançado em começos de 2002.
The Association - "I'll Be Your Man" (1966). A voz principal deste tema esteve a cargo do guitarrista, baixista e percursionista Russ Giguere (1943) (o 1º à direita na imagem). Os outros elementos são, da esquerda para a direita, Terry Kirkman (1939) voz, instrumentos de sopro, teclados e percussão; Brian Cole (1942-1972) voz, baixo elétrico, baixo acústico e contrabaixo; Larry Ramos (1942- 2014) (chegou ao grupo em Abril de 1967, quando Gary Jules Alexander (1943) saiu) voz e guitarras; Jim Yester (1939) voz, guitarras e teclados; Ted Bluechel (1942) voz, bateria e percussão.
The Association - "Remember" (1966). A voz principal deste tema esteve a cargo do guitarrista Jim Yester (1939).
Este temas dos The Association, tiveram por trás a produção e, nalguns casos, a participação instrumental, de Curt Boettcher. Na sua variedade, constituíam um paradigma perfeito daquilo a que se chamou "Sunshine Pop", cuja época de maior expressão foi entre 1965 e 1969.
The Association - "Along Comes Mary" (1966). Versão ao vivo de 1967 no, então, muito popular programa televisivo "Smothers Brothers", onde atuaram muitos nomes da música moderna daquele tempo, inclusive de fora dos Estados Unidos, como os britânicos "The Who". Destaque para a "apresentação" do grupo feita pelo baixista Brian Cole (1942-1972).
Curt Boettcher afastar-se-ia dos Association na sequência do seu primeiro álbum "And Then... Along Comes The Association" (1966). Nos anos seguintes, os Association continuariam a somar êxitos e, sobretudo, a compor e a interpretar temas de grande qualidade musical. Apesar de já não estar presente, é indiscutível o papel primordial de Curt Boettcher na descoberta e, ainda que indiretamente, na posterior afirmação desta banda que, ainda hoje, suscita agradáveis recordações.
The Association - "On A Quiet Night" (1967). Destaque para a voz de Jim Yester (1939).
The Association - "When Love Comes To Me" (1967).
The Association - "Never My Love" (1967).
The Association - "We Love Us" (1967). Uma das poucas composições do baterista Ted Bluechel.
The Association - "Requiem For The Masses" (1967). Composição e voz principal de Terry Kirkman.
The Association - "Birthday Morning" (1968). Mais uma vez, a voz de Jim Yester em destaque.
The Association - "Six Man Band" (1968). Eram assim, de facto, os Association originais...
The Association - "Across The Persian Gulf" (1981). Um breve relançamento dos Association já na década de 1980.
The Simple Image - "Spinning, Spinning, Spinning" (1968). Um tema com a co-autoria de Curt Boettcher. Este grupo era originário da Nova Zelândia.
Entre os diversos grupos com os quais Curt Boettcher colaborou, direta ou indiretamente, estavam os já referidos Beach Boys, e também The Association, The Byrds, Paul Revere & The Raiders, Chad & Jeremy, Tommy Roe, Elton John, Bruce Johnston, Lee Mallory e Gary Usher. Foi igualmente um dos elementos fundadores de diversos grupos musicais, ainda que essencialmente de estúdio, nomeadamente Ballroom, Sagittarius e The Millennium. Estes, apesar de tudo, foram de muito curta duração. A nível individual, Curt Boettcher só lançou em vida um álbum There's an Innocent Face, que foi um fracasso comercial, apesar do seu ecletismo em termos de género musical.
Gary Usher (1938-1990), um dos grandes amigos e colaboradores de Curt Boettcher, entre muitos outros projetos, participará como a "outra metade" do grupo Sagittarius, tal como é visível na capa do primeiro álbum ("Present Tense") de 1968, em baixo. Ele surge à esquerda, Curt Boettcher (1944-1987) à direita. Na prática, não era um grupo que tivesse uma formação definida. Era apenas um "projeto de estúdio" onde entraram e saíram diversos artistas e músicos de estúdio e incluía, sobretudo na edição póstuma em CD, diversos temas gravados entre 1966 e 1968, alguns destinados a outros projetos abortados e muitos deles inéditos até 1997. Um disco essencial e, na minha opinião, obrigatório para quem (realmente) gosta de (boa) música.
Sagittarius - "Another Time". Gravação inédita de 1967, depois lançada em 1968. Tema de abertura do LP "Present Tense".
Sagittarius - "The Keeper Of The Games" (1968).
Sagittarius - "My World Fell Down". Gravado e lançado numa versão ligeiramente diferente em 1967, da que foi incluída no LP "Present Tense", em 1968. Foi o único êxito dos Sagittarius, em 1967. Os seus autores eram a dupla, muito prolífica, Carter-Lewis (os ingleses John Carter e Ken Lewis), os quais já a haviam lançado, enquanto membros dos Ivy League em finais de 1966.
Sagittarius - "I'm Not Living Here" (1968).
Sagittarius - "Musty Dusty". Gravação inédita de 1966 de um grupo anterior, Ballroom, depois incluída em, 1968, no álbum "Present Tense". A sua autoria era a mesma do tema "Along Comes Mary", o já referido êxito dos Association, ou seja, Curt Boettcher e Tandyn Almer. Era um tema sobretudo deste último, tal como o outro era sobretudo de Curt Boettcher. Como Almer havia cometido a "vigarice" de registar o "Along Comes Mary" só sob a sua autoria, ao perceber que estava para ser um êxito seguro e para receber a totalidade das royalties, em resposta, Curt Boettcher registou "Musty Dusty" só sob a sua autoria individual. "Tit for Tat". Mas, como se veio a comprovar, quem acabou por ficar a ganhar, para sempre, foi Tandyn Almer, pois "Along Comes Mary", não só através dos Association, é um hit ainda hoje repetidamente lembrado e editado num sem número de circunstâncias. "Musty Dusty" é apenas mais uma pequena pérola esquecida no tempo e que muito poucos conhecem...
Sagittarius - "Get The Message" (1967). Um dos diversos temas inéditos recuperados na edição de "Present Tense" em CD de 1997. O seu intérprete era um dos vários "ilustres desconhecidos" cantores de estúdio, que entraram e saíram dos Sagittarius (antes do grupo, efetivamente, existir), sem serem sequer creditados. No CD fala-se no nome "Michael". Há quem tenha sugerido que seria Michael Z. Gordon, um dos autores da canção e que, em parceria ou individualmente, compôs diversas canções, algumas delas êxitos, para outros artistas mais conhecidos. Houve uma versão deste tema que foi um êxito menor, nesse mesmo ano de 1967, de um certo Brian Hyland, cantor famoso pela sua interpretação do êxito mundial "Sealed With A Kiss", em 1962.
Sagittarius - "Sister Mary". Parte instrumental de um tema, gravado por Gary Usher, a pensar no grupo Sagittarius, mas que ele acabaria por destinar à, mais famosa, dupla de cantores de rock/folk Chad & Jeremy. Estes gravariam a sua versão, já com letra, por alturas seu melhor disco "Of Cabbages & Kings" de 1967. É o tema, até então inédito (1997), com que a edição em CD de "Present Tense" encerra.
The Goldebriars. A formação original. Curt Boettcher está ao centro. Os outros elementos são: Ron Neilson (em cima) e as irmãs Sheri e Dottie Holmberg (à esquerda e à direita, respetivamente). |
Goldebriars - "Come Walk Me Out" (1964).
Goldebriars - "Shenandoah" (1964).
Fora ainda gravado um terceiro álbum, com novos membros, entre estes Ron Edgar, no final de 1964, mas cujo lançamento, previsto para o começo de 1965, foi cancelado.
Goldebriars - "Nothing Wrong With You That My Love Can't Cure" (1964-1965).
Nestes primeiros discos, começava-se a vislumbrar um pouco do estilo musical que Curt Boettcher aperfeiçoaria mais adiante e que ficou conhecido como "Sunshine Pop". Este género musical constituiria muito do pano de fundo onde se constituiriam muitas das bandas, que ficariam associadas à cena musical da "West Coast", mais concretamente na zona de San Francisco, ou que por ela foram influenciadas.
The Ballroom - "You Turn Me Around". Gravação dos "The Ballroom", um grupo que Curt Boettcher fundou e integrou, feita em 1966 e que ficou inédita até 2001. Ele surge à esquerda na foto e, no extremo direito, surge também Sandy Salisbury que, dois anos depois, integraria os "Millennium", também como compositor. Outro tema fundamental desta fase é "Magic Time".
Curt Boettcher - "Astral Cowboy" (ca. 1968/1969).
Pode-se afirmar que Curt Boettcher foi um dos principais artistas que contribuíram para o aparecimento da moda do psicadelismo, do "Flower Power" e do movimento Hippie a eles associado. Foi a partir do Sunshine Pop, que terão surgido diversos artistas e grupos marcantes da segunda metade da década de 60, tais como Scott Mackenzie, The Jefferson Airplane, The Loving Spoonful, The Mammas and Pappas e The Flower Pot Men, estes últimos em Inglaterra.
Curt Boettcher - "Misty Mirage" (ca. 1968/1969).
Com o começo dos anos 70, a carreira de Curt Boettcher começou a decair gradualmente, dado que, da sua autoria ou colaboração, não houve mais nenhum êxito de assinalar. Por outro lado, o panorama musical estava algo inóspito para a sua linha criativa. Apesar da diversidade de géneros musicais que agora enformavam a música pop contemporânea, eram essencialmente duas as opções dominantes nesse começo dos anos 70: a progressive music e o rock pesado. Dois géneros algo estranhos para o gosto pessoal de Curt Boettcher. Para além disso, dos diversos grupos musicais que haviam surgido e sobrevivido durante os anos áureos do Sunshine Pop, muitos já se haviam dissolvido, outros mudaram de nome e de estilo tornando-se em algo completamente irreconhecível e os poucos que se mantinham nessa onda, soavam a anacrónicos.
Sob a insistência do produtor Jac Holzman, que retinha na memória a grande qualidade do disco Begin dos Millennium de 1968, Curt Boettcher grava para a editora Elektra o seu único álbum em vida There's an Innocent Face, em 1971.
Curt Boettcher - "The Choice Is Yours" (1971-1973).
Curt Boettcher - "Malachi Star" (1971-1973).
Curt Boettcher - "Lay Down" (1971-1973).
Este álbum sairia apenas quase dois anos depois, em 1973, tendo sido recebido com quase completa indiferença quer pelo público, quer pela crítica, apesar da variedade de géneros musicais nele contida. Ainda houve uma breve tentativa para gravar um segundo disco a solo intitulado Chicken Little Was Right, mas que acabaria por ficar incompleto e só seria editado postumamente 30 anos depois, em 2004.
Curt Boettcher - "If You Only Knew" (1973-2004).
Posteriormente, o seu trabalho, quer como músico, quer como produtor, dispersou-se por cada vez menos projetos, sem grande relevância nem impacto comercial. Um dos seus últimos trabalhos, consistiu na produção de um álbum a solo de Mike Love, vocalista dos Beach Boys. Tinha como título Looking Back With Love e foi lançado em 1981. Foi um completo fiasco, quer do ponto de vista comercial, quer crítico, tendo mesmo os fãs dos Beach Boys, considerado este álbum o pior de sempre alguma vez gravado, quer pelo grupo, quer por um dos seus membros.
Nos anos 80, com uma realidade musical muito diferente daquela em que ele havia sido marcante nas mais diversas vertentes, sobretudo no que respeita ao tipo de música então em voga, a sua importância decresceu ao ponto do quase esquecimento. O "sunshine pop" era uma relíquia do passado e já não cativava as novas gerações de ouvintes.
O movimento "punk" havia voltado a valorizar os temas duros e polémicos, para não falar na revolta com ou sem causa, associados ao rock, menosprezando os grandes arranjos melódicos e as vozes algo delicadas.
A música feita à volta de instrumentos eletrónicos, nomeadamente a nível das caixas-de-ritmo,com o auxílio crescente do computador, de batida sonora e ritmo empolgante, com o elemento dançável nunca longe de vista, era agora a moda.
Mesmo a nível das baladas, o modelo que mais fazia vender e ocupava os média, era o das "power-ballads", onde a presença da guitarra-eléctrica tocada em estilo apoteótico e dos sintetizadores de som tonitruante, raramente era dispensada. Havia como que uma idolatração relativamente a tudo o que evocasse os cenários futuros, fossem optimistas ou pessimistas, associada a uma atitude de amor-temor relativamente à tecnologia digital e à sua derivada "Inteligência Artificial", que pareciam estar prestes a dominar a própria humanidade que as havia criado.
Só as velhas glórias do passado, por vezes ressuscitadas oportunamente em colectâneas de êxitos e em reuniões mais ou menos aguardadas, é que conseguiam aqui e ali conquistar uma breve e pontual atenção dos média e, consequentemente, um ocasional nicho de mercado. Curt Boettcher nunca fizera história no campo dos espetáculos ao vivo, agora uma condição quase sine qua non para se ficar conhecido ou não cair simplesmente no esquecimento. O seu nome, individualmente, nunca tivera divulgação internacional nas décadas de 60 e 70 e, durante o seu tempo de vida, ele era sobretudo conhecido por entre o mundo artístico americano, em especial na região da "West Coast". Por outro lado, sendo ele sobretudo um homem de (grande) importância a nível de bastidores, a maior parte do seu público contemporâneo nunca lhe dispensou a atenção devida, ou seja, o nome de Curt Boettcher nunca foi verdadeiramente vendável.
Só mais atualmente, com as profusas reedições em CD de álbuns já fora do mercado há muito e da obra de diversos grupos e cantores, embora em edições de apenas alguns milhares de exemplares, feitas quase sempre a pensar nos colecionadores, nostálgicos e "connaisseurs", facilmente esgotáveis portanto, é que o seu nome voltou a ser verdadeiramente lembrado e a ocupar o seu devido lugar na história da música, pelo menos, ocidental.
Curt Boetcher - "Another Time" (ca. 1968/1969). Versão a solo posterior à dos Sagittarius e com, pelo menos, um novo verso acrescentado.
Curt Boettcher já não teve, infelizmente, oportunidade para assistir a esta, ainda que algo tímida, revitalização do seu nome, pois faleceu a 14 de Junho de 1987, na sequência de uma operação pulmonar. Gary Usher, um dos seus mais diletos amigos e acérrimos defensores, seguir-se-lhe-ia em 1990.
Uma das diversas coletâneas existentes relativas a Curt Boettcher, tendo sido esta lançada em 2019. |
Ao rever esta cena do filme "Dirty Dancing" ("Dança Comigo"), cuja estreia ocorreu em 1987, é Curt Boettcher quem me vem à memória. Terá sido uma "homenagem" discreta que lhe fizeram (e quase ninguém deu conta)? O cantor principal, em especial a sua voz, parece fazer lembrar Curt Boettcher, falecido nesse mesmo ano (1987)...
"Kellerman's Anthem" (from the movie soundtrack "Dirty Dancing") (1987). A versão completa deste tema.
1 comentário:
Dois grandes talentos, realmente. Curt fez muito pela música pop dos anos 60. Millenium, Sagittarius, Association, os discos solo, enfim, está tudo aí para as novas gerações descobrirem e se deliciarem. Belo tributo.
Enviar um comentário